quarta-feira, 18 de junho de 2008

Rancor

São umas três da manhã quando o telefone toca sem parar na sala. Ele apenas tenta esquecer o som e voltar a dormir, certamente esperando que desistam, e obviamente não é o que acontece. A jovem ao seu lado, murmura em seu ouvido para que ele atenda e então o empurra da cama com os joelhos ossudos e sua testa contra a omoplata.

- Alô.
- Miguel?
- O que foi? Por acaso sabe que horas são?
- Miguel. Papai morreu.

Ele desliga o telefone e então caminha pela casa. Olha para a menina deitada em sua cama e então começa a vestir sua calça, uma blusa de botões amarrotada e faz o nó de sua gravata de qualquer jeito.

- Onde está indo querido?
- Tenho que sair. Se eu não voltar, apenas encoste a porta quando sair.
- Aconteceu alguma coisa?
- Nada. Tem comida na geladeira.

No carro, ele liga o som. Vai ouvindo Electricityscape, enquanto passa pela cidade na madrugada. Desce pelo eixo monumental a caminho da Asa Sul, o aviso de que faltam apenas algumas centenas de dias para o aniversário de 50 anos de Brasília o faz sentir um frio sem propósito.
As luzes dos sinais, poucos carros e alguns anúncios refletem um brilho estranho no vidro do carro, e ele percebe que não buscou seus óculos. Por isso. É por isso que seus olhos estão tão embaçados.
Resolve parar no posto para tomar um café. O celular fica vibrando em seu bolso enquanto ele paga no seu cartão um café duplo e uma carteira de Luke Strike.

- Alô.
- Uma menina atendeu o telefone da sua casa. Onde você está?
- Parei em um posto de gasolina.
- Você está vindo para cá?
- Estou na rua, não estou?
- Quem atendeu o telefone?

Ele entra no carro e acendo o seu cigarro. Dirige até a rodoviária e vê uma prostituta gorda e velha parada perto ao sinal quando resolve parar para acender outro cigarro e olhar de longe a catedral.

- Afim de um boquete querido?
- Meu pai morreu.
- Sinto muito.

O carro parte virando para a L2, ele passa por lindas árvores e percebe a solidão de casas aonde apenas o térreo se mantêm iluminado, talvez uma ou duas casas mantêm uma breve luminosidade azul, televisão ou internet. Os companheiros de um dia de semana de brasilienses.
Ele avisa ao porteiro que precisa ir ao apartamento 501.

- Desculpa Miguel. Seu pai disse que não era para deixar você subir.
- Ele morreu. Ele acabou de morrer.

...

A porta abre e uma mulher de 27 anos com o rosto vermelho e molhado atende a porta. Ela tenta dizer alguma coisa, mas só consegue se escorar na beirada.

- Ele está no quarto?

Ela acena que sim.

- Toma um cigarro.

Ele passa pelo corredor e nota que todos os três filhos estão na estante, à mulher que atendeu a porta, aquele que está fazendo intercambio e este que se apóia buscando coragem de seguir adiante nessa casa que não tem mais suas fotos.
O quarto tem o cheiro de seus charutos horríveis, uma estante cheia de livros e um homem robusto deitado de olhos fechados.
Ele passa as mãos sobre sua barba grisalha, nota o olhar forte mesmo em seus olhos fechados. O mesmo olhar que o expulsou desta casa anos atrás.

- Você não é meu filho!

Ele beija o rosto do homem e deixa a carteira de identidade sobre o seu peito.

- Mas você é meu pai. Velho filho da puta.

3 comentários:

mombasca disse...

muito bom, como sempre

Mah disse...

eu não saberia dar uma reposta tão boa como essa.

Eduardo disse...

Você é um filho da puta... Teus textos são poucas coisas que consigo ler. =D
Te amo cara.