terça-feira, 14 de março de 2017

Detetive ao som de pagode

Ele não acreditava em milagres, salvo o Botafogo ser campeão mundial, mas preso em uma máquina com um som monótono ele percebe que não existem milagres, apenas uma maldição de existência após três tiros nas tripas.
- Senhor, Madureira?
O policial de terno barato estava aguardando no sofá de visitas. Pelo menos alguém na falta de um familiar.
- Meu nome é Antônio Silva. Precisamos conversar sobre os assassinatos que ocorreram.
- Legítima defesa.
- Não duvido disso, mas preciso que...
- Só com meu advogado presente.
A paciência do policial acabou e ele aperta o saco de soro fazendo meu peito pular e o braço sangrar.
- Escuta aqui, seu merdinha. Quem você matou era um homem importante. Importante o suficiente para te manter vivo. Que tal começar a falar aonde está a menina?
Não entreguei a garota sobre ameaças, tinha dito que ela valia a minha vida, mas impressionantemente um homem pode mudar de ideia ao sobreviver ao sacrifício.
- No meu escritório! Não tem como errar é a sala queimada e cheirando mal.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Doces de domingo


Após o almoço surge aquela necessidade absurda por uma pequena dose de glicose, a mesma que nos impede de dormir sobre os pratos e preserva a etiqueta do papo furado de domingo na casa da tia Antonieta. O próprio nome já remete ao ambiente com bibelôs e rococós por toda parte. Fico pensando se a maioria das viúvas de setenta anos são bregas pelo período que nasceram ou se pelo longo período de abstinência de contato social.

Voltando a cena da exigência glicogênica, vejo a exposição clara da crise econômica sobre a mesa. Nada de compotas, tortas, pudins e manjares deleitando nossos olhos. A tradição de antigos domingos é destruída pela visão triste e azulada de uma caixa de bombons. Um lamento passa por todos presentes e imagino que se meu tio Angenor ainda estivesse vivo morreria de desgosto. A diabete o levara no ano passado, o que para muitos da família foi um assassinato premeditado partindo de sua companheira que agora estava confirmado. Por que o fim dos doces após a morte de tio Agenor? A missão estava consumada. Essa cruel e maquiavélica doceira de mão cheia concluiu seu plano e agora não nos oferecia seus quitutes pois nunca foram nossos. Eram adocicados venenos, bem calculados e organizados para um fim que finalmente chegara.

As crianças avançaram para a caixa, ávidas para escolherem os seus favoritos, os mais velhos se resignaram a simplesmente ignorar e já pairar seus interesses no aroma do café e talvez na pilha de jornais e revistas estacionadas na poltrona de frente a TV. Era inevitável! O fim das conversas animadas durante os gemidos de prazer ao sentir o caldo de ameixas em meio ao manjar branco, a obliteração das piadas sacanas estimuladas pela overdose de açúcar ao degustar uma laranja encharcada recém saída de uma compota. Era isso. A aniquilação de uma família residia em uma mesa sem doces reduzida a uma caixa de bombons.

Já estava me retirando quando vi aquele pequeno bombom azul bebê olhando para mim. O mesmo olhar que me trazia doces memórias de um período de joelhos ralados e beijos roubados com minha prima Catarina atrás da distribuidora de bebidas do tio Fernando. Aquela criatura manhosa, de olhar plácido, que agora mais me parecia de um hippie maconheiro, com uma flor nos lábios me prometendo uma inesquecível experiência ao rasgar do lacre e deixar a suave película de chocolate romper entre meus dentes me levando ao paraíso em forma de caramelo com leite maltado. O nome ainda estava ali como uma promessa, um pedido de desculpas por um longo período de ausência: Lollo.

Arranquei o chocolate da mão do incrédulo filho de Catarina. Quem mandou ela se casar com esse Antônio que nem da família era?  Ela que aguente seu pranto agora. Fiquei com a guloseima nas mãos, me lembrando da tristeza ao ver na televisão sua odiosa transformação e traição. O chocolate de uma vaquinha amorosa e amarelada se vendendo aos planos maquiavélicos de marketeiros imperialistas, transformado em piada, expondo seu traseiro ao som de um Hit odioso de Lá Vem o Negão e, como se não bastasse, se afastando de nós em um nome impronunciável. O nome, o maldito nome que sempre me fazia passar vergonha ao tentar pedi-lo nas lojas de doces.

- Seu Manoel quero um Lollo.
- Um o quê, menino?
- Aquele chocolate macio.
- Qual? Não tenho nenhum Lollo.

O pobre senhor Manoel era meio gagá. Não posso culpá-lo pelo Alzheimer adiantado que o impedia de se lembrar que, alguns meses antes, o novo chocolate chamava-se simplesmente Lollo e não este nome estrangeiro idiota que, por não conseguir pronunciar, algumas vezes gerando risadas de outros garotos da minha rua, me obrigava a pedir outro e sentir o amargor da derrota em meio a mordida de Chokitos e Sonhos de Valsas.


Poucas memórias me fizeram sofrer tanto quanto esse chocolatinho de vaca lesada em minhas mãos. Minha esposa e a própria tia Antonieta vieram me consolar ou pelo menos tentar entender o porque das lágrimas e risos constrangedores que começavam a assustar as crianças e servir de último prego em um domingo que fatalmente chegava ao fim.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Em uma praia

Quantas pessoas já caminharam nessa praia?
Quantos primeiros beijos foram dados nessa praia?
Quantas crianças vestiram capas e defenderam fortes nessa praia?
Quantos viram o mar pela primeira vez nessa praia?
Quantas pessoas choraram nessa praia?
Quantos olhares foram trocados nessa praia?
Quantas famílias passaram férias nessa praia?
Quantos cães correram em direção ao mar nessa praia?
Quantas pessoas fizeram exercícios nessa praia?
Quantos relacionamentos terminaram nessa praia?
Quantas músicas foram tocadas nessa praia?
Quantos velhos lembraram da juventude nessa praia?
Quantas mulheres sorriram para si mesma nessa praia?
Quantos perderam o ônibus e não puderam estar nessa praia?
Quantas pessoas terminaram de ler um bom livro nessa praia?

Quantos textos já foram escritos nessa praia?

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Peregrinação

Santiago nunca teve grandes ambições, apenas viver lhe bastava. Ser o mais monótono ser humano de toda existência e passar despercebido pelo planeta. De certa forma ele já tinha sido moldado para isso, Santiago nascera em Brasília.

O que simboliza a rotina para um homem que é um verdadeiro ciclo vicioso? Ele não conseguiria ser mais superficial mesmo que tentasse, convenhamos, ele nunca tentou nada de verdade. Seus dilemas, suas fraquezas, suas crises, seu olhar para a janela perguntando-se: “Por que não me atiro de vez?” Mas sabemos o motivo, Santiago era apático demais até para uma decisão sobre o fim de sua apatia.

Em algumas raras ocasiões esta sensação sublimava e parecia que ele fazia parte de algo mesmo em uma multidão. Sabe quando olhamos para um grupo de pessoas andando no centro de alguma grande cidade, como São Paulo, Nova York ou Tóquio? Sentimos que no meio daqueles olhares apressados, em direções mescladas, existe alguma unidade, uma espécie de finalidade urbana orgânica. Quase como um modo da cidade dizer que naquele instante os olhares vazios estão em uníssono gritando: “Somos um! Temos uma função!” Talvez ali, naquele momento, Santiago poderia fazer parte de algo, mas estamos falando de Brasília e em Brasília multidões duram apenas o tempo de atravessar uma faixa de pedestre na rodoviária.

Não. Ele não poderia buscar nenhuma finalidade para si, nenhuma forma de superação para sua pequenez e solidão. Bastava estar sozinho para olhar diretamente aqueles que dizem não estar para ter a certeza que, de fato, todos estamos. Casais sem assuntos sentados na mesa, pais lembrando-se por um segundo do porquê tiveram filhos, jovens gritando por mudanças que não acreditam e bêbados buscando companhia para virar copos enquanto sofrem sozinhos. Todos vivendo um ciclo de companheirismo cênico dia após dia.

Atravessar a cidade no final da noite era um dos poucos momentos de euforia de seus dias. Saía de casa perto das 10 da noite no final da W3 Norte em sentido a rodoviária para depois voltar. Sempre ficava próximo da janela, colando sua testa protuberante e gordurosa no vidro gelado. Gostava de olhar as prostitutas fumando nas paradas, algumas vezes descia e esperava por perto o próximo ônibus que completaria seu destino. Nunca pensou em sair com uma delas. A simples ideia de convidar uma prostituta para dentro de um ônibus não fazia sentido e ele nunca aprendeu a dirigir. Convidar uma delas para ir andando também não parecia correto, mesmo que uma das paradas estivesse a menos de 100 metros de sua kitnet. Não, ele preferia assistí-las, seja passando por elas ou aguardando o ônibus na parada. Carregava consigo um maço cheio de cigarros que nunca fumava, mas sempre oferecia.

Em sua casa ele não possuía nada além do mais funcional possível. Sem televisão, sem rádio, sem livros, sem animais, sem plantas, sem fogão. Apenas uma mesa de centro vazia, um armário com suas roupas, sua cama, um frigobar e um quadro que até hoje não sabe o porquê comprou na Feira da Torre. Tinha algo naquele quadro que chamou sua atenção à primeira vista. Algo sobre as cores talvez, ou a ausência delas. Não saberia dizer, nunca entendeu nada sobre arte e jamais pesquisou a respeito. A compra desta peça era uma incógnita e talvez por isso todas as noites ficasse olhando para ela por alguns instantes antes de dormir.

O que simboliza a rotina para um homem que é um verdadeiro ciclo vicioso? Para Santiago a rotina era uma benção, um salvo conduto. Não ter que planejar os seus dias era o que mais o agradava. Acordar ao toque do despertador, escovar seus dentes, tomar o seu banho, descer até a padaria para tomar seu café da manhã, ir ao trabalho, sair para o almoço, voltar ao trabalho, ir para casa, tomar outro banho, pegar um ônibus até a rodoviária para depois voltar para casa olhando as prostitutas antes de perder o seu olhar no quadro e ir dormir. Santiago nunca teve grandes ambições, apenas viver lhe bastava. Ser o mais monótono ser humano de toda existência e passar despercebido pelo planeta. De certa forma ele já tinha sido moldado para isso, Santiago nascera em Brasília.

sábado, 31 de agosto de 2013

Fisioterapia - Parte 1

Nota: Após um abandono real de meu blog, volto com as postagens. Segue inicialmente um exercício de fisioterapia literário em algumas partes, até que minhas ideias voltem por conta própria.

Teste de escrita 01.

Temas sorteados: Perda do Amor / Mítico / Nômade

O palco está quase montado. Mantos cinza e garrafas pets com velas constroem o Tártaro, ou pelo menos nos dá pistas para que possamos construí-lo por nós mesmos. E aqui estou em frente as cadeiras vazias com uma maquiagem incompleta e sentindo frio.

- Paulo, você ainda não está pronto?!
- Orfeu, Fernanda. Meu nome é Orfeu. 
- Não enquanto estiver usando jeans. Vá logo se arrumar!

Adoro tudo o que o teatro representa. Cores, cheiros, imaginação, roteiro e, claro, a atuação. Estar em um palco é a permissão de ser outro na frente de todos, é o escapismo verdadeiro de quem somos. Um peregrino de nós mesmos.

- Paulo, existe alguma chance de conversarmos sobre o que aconteceu ontem?

A maquiagem cumpre o seu papel. Ela não poderia estar mais morta. As manchas, a palidez... Assim, de fato, ela lembra uma aparição do que já foi.

- Você morreu, Eurídice. Foi isso o que aconteceu.

Vejo gotas destruindo a maquiagem e o traído em mim não tem como evitar notar a beleza neste ato.

- A cortina vai abrir em cinco minutos, é melhor você criar um novo rosto.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Organograma


Olho atentamente para o círculo em azul em volta do dia 31 de janeiro de 2013, hoje foi a data que marquei para morrer.

Faz exatamente três meses que pensei pela primeira vez em acabar com a minha vida. Olhando para trás vejo que a expectativa sobre as festas de final de ano fora demasiado pretensiosa. O mês de janeiro acabou e estou com a ferramenta necessária para acabar com todas as dúvidas.

Investir um pouco de dinheiro todo o mês para comprar uma Taurus calibre 38 talvez tenha sido meu único projeto bem sucedido. Irônico notar que entre pagar as contas, comprar meus remédios, uma prostituta e assistir dois filmes, existiu uma reserva para comprar a arma de um desconhecido que aumentou o valor na última semana.

A prostituta. Algumas pessoas acreditam realmente que suicidas são pessoas tristes, amarguradas e que provavelmente são carentes de amor em suas vidas. Não é o meu caso. Não tenho nenhuma tristeza, amargura e falta de amor acima da usual urbana. Decidi trepar com uma prostituta pelo simples motivo de saber como era trepar com uma antes de morrer. Simples assim.

Pensei se deveria escrever uma carta, mas mudei de ideia ao pegar a caneta. De que valeria deixar algo se ninguém leria? Realmente gostaria de meus esforços tão ridículos em um talento que jamais possuí fosse ainda mais medíocre sendo lido por um policial ou um legista? - “Deixo aqui... bla bla bla... o mundo é cruel... bla bla bla... Sou um derrotado! Deixa isso para lá, o que temos para almoço?” - Não, prefiro deixar apenas uma sujeira no chão e com sorte manchar uma barra de calça desses prestadores de serviço.

Coloco as seis balas dentro do revólver e sinto o seu peso em minha mão. É uma arma pequena, mas parece realmente poderosa. Uma pressão e tudo acaba. Não a toa que tantas pessoas são assassinadas todos os dias, o controle de uma vida no contrair de um dedo. É impressionante.

Abro a minha boca, sinto o ferro gelado de encontro com minha língua e sinto o bater suave nos meus dentes de baixo. Jurava que estaria trêmulo, mas acho que isso significa que estou realmente pronto. É como sempre me disseram que seria uma sessão de Yoga, estou em paz. Encontrei Buda dentro de minha boca.

Um pensamento engraçado passa por minha cabeça e não consigo evitar de sorrir. Será que sentirei o gosto da pólvora?

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Ecos



Avisos são como ecos quando se está sozinho. Você os escutou durante alguns anos e meses até que tudo o restou são as memórias do que foi dito e não feito.