quarta-feira, 21 de maio de 2008

Açúcar Mascavo

Cresci em uma fazenda no interior de Alagoas. Nessa casa antiga montada no século XIX morava minha mãe, meu pai o coronel Sebastião Justo e por 17 anos eu também vivi com eles.

Sebastião Justo era um homem prático e sem nenhuma qualidade como pai ou marido. Seu trabalho era cuidar da cultiva da cana-de-açúcar e isso fazia magistralmente ao suor de seus empregados, que tratava com o zelo que destinava as mulas.

Minha vida era a promessa de aprender seus passos e guiar esta fazenda que pertenceu ao meu bisavó por custa de escravos e por vitória, na posição de capitão, pela revolta da Cabanagem.

Quando tinha uns cinco anos, minha irmã mais nova morreu de uma febre e nesse mesmo momento, minha mãe se apegou mais de mim. Me contava várias histórias de seus romances e ficções que parecia fazer sua vida menos áspera.

Tinha oito anos quando descobri que os livros que tanto apreciava em dividir com minha mãe e ler sozinho entre a cana seca na lavoura, poderiam ser dolorosos.

- O que deseja ser quando crescer senhorzinho? – A pergunta veio de um amigo de meu pai, um senador de Alagoas, durante um jantar.

- Escritor.

Meu pai apenas levantou da mesa e me acertou um forte soco na boca. Foi apenas o momento dele apenas pedir desculpas aos convidados e minha mãe levar uma criança de lábios inchados para o quarto.

Chorei por alguns momentos no colo de minha mãe e enquanto ela passava Arnica em meu rosto, me olhou nos olhos dizendo a regra mais simples e verdadeira desta casa.

- Ele gosta quando choramos. Apenas guarde isso para si.

Aos meus doze anos, uma jovem chamada Jardenne veio trabalhar em nossa casa. Era prima de nossa governanta, que vivia mais afastada, quase beirando a Pernambuco. A menina deveria ter uns 17 anos quando veio para a fazenda e tinha os olhos bem escuros com um brilho tão forte nos olhos que me deixava tonto. Sua pele era do tom de mascavo e brilhava ao sol.

Ela foi a única amiga que tive, aquela que brincava comigo e pedia para ler alguma coisa para ela quando o coronel não estava em casa, desde aquele dia os livros entravam escondidos por conta do padre Antônio.

- Como tantos dias podem caber em um livro? De onde surgem tantas pessoas e tantos lugares?

- É um pouco de magia Jardenne.

- Magia?

- Como a chuva que seus olhos carregam. O cheiro do mato no seu cabelo e sol marcado em sua pele.

- Você diz coisas estranhas.

Um dia meu pai simplesmente me pegou pelo braço e me levou para a cidade. Viajamos calados por duas horas e então entramos em uma casa toda enfeitada e com cheiro doce por todos os lados, havia um mundo de mulheres vestidas como rainhas e muitos homens bêbados.

- Hoje você vira homem. Está na hora de esquecer as besteiras que sua mãe fala.

Uma senhora me pegou pelas mãos e me levou a um quarto. Ele era coberto de seda, pó, quente e com tanta fumaça que me deixava tonto. Pegando em minhas mãos ela disse para eu esperar sentado que logo eu receberia um presente. Me deu um beijo molhado e pegajoso no rosto, saindo e deixando uma enorme marca de batom.

Uma menina entrou em pouco tempo, tinha o rosto pintado e um olhar parecido com o de minha mãe, triste e distante, sentou ao meu lado e passou a mão em minha perna.

- Você parece um boneco de tão bonito.

- Obrigado.

- Quer que eu tire a minha roupa primeiro?

Eu fugi em pânico. Meu pai me bateu mais ainda e disse que eu o envergonhava. A dona do estabelecimento disse que eu era muito menino ainda, que ao contrário dele, talvez eu devesse voltar em um ou dois anos, quando as cabras não forem o suficiente. Ela riu e pediu que meu pai tivesse paciência.

Voltando para casa, ele discutiu com minha mãe. Disse que seu filho tinha se tornado um frouxo por culpa dela, que não iria passar a fazenda para uma mulher cuidar e que daria sua casa, fazenda e fortuna ao seu bastardo ao invés de mim. Com uma mulher de verdade, em seus conceitos, ele tinha certeza que teria um filho de verdade.

Fiquei em meu quarto, desta vez eu escondi o choro, lendo um livro sobre contos de uma terra distante com objetos mágicos e areias sem fim.

- O coronel te levou ao Bordel?

Jardenne trazia um suco de caju em uma jarra e sentou ao meu lado.

- Não tem nada demais menino. Todos os homens tem que se deitar com uma mulher.

- Eu quero só sair daqui. Quero ir para o mundo de Aladin, de sultões e magias.

- Isso é só faz de conta. São histórias. Você tem que fazer o que o coronel manda.

- Odeio esse homem! Eu quero que ele morra.

- Um dia isso vai acontecer. Mas precisa lembrar que ele é seu pai e deve obedeces-lho.

- Você não fugiu de casa? Eu posso fazer o mesmo. Vamos fugir juntos!

- Pára de falar besteira Amilton.

Ela tirou meu cabelo do rosto e beijou lentamente meus lábios. Ela me abraçou e pude sentir todo o seu corpo me envolver, me esquentando e fazendo disparar meu coração ao ponto de doer no peito.

Ela não me disse nada. Apenas tirou sua roupa, me mostrando todo o tom do açúcar mascavo e os olhos chuvosos brilhando para mim. Tirando minha roupa me abraçou, deixando que nos tornássemos apenas um em um calor que somente pude nomear de amor.

Dormiu ao meu lado e depois disso me deu um beijo doce na testa e chorando disse para eu arrumar minha mala, que iria arrumar as coisas dela para fugirmos juntos.

Quando cheguei com a mala na sala, meu pai estava sorrindo com um charuto em sua mão. Botou um copo de bebida ao seu lado e serviu outro para mim.

- Você é como eu menino. Não come fora se tiver em casa. Jeitosinha ela.

- Eu a amo Coronel. Vou sair de sua fazenda e me casar com ela.

- Casar com ela? Seu idiota! Quanto acha que custou para ela dormir contigo?

- ...

- Pelo menos foi mais barata que as da cidade.

Corri para meu quarto e pela primeira vez não conseguir esconder minhas lágrimas. Chorei como um desesperado, como alguém perdido em um lugar estranho, sem nenhuma chance de jamais sair de seu cárcere.

Dormi e ao acordar, percebi um pano embaixo de meu travesseiro. Nele tinha alguns tostões, um torrão de açúcar mascavo e uma mecha de seu cabelo preto.

Comprei meu primeiro bloco de notas com aqueles tostões que foi o custo de minha virgindade.

Jamais me encontrei com Jardenne novamente, mas sei que tudo que escrevo é um louvor a seus olhos chuvosos e sua pele de açúcar mascavo.

3 comentários:

Anônimo disse...

Talvez o momento certo para comentar, digerir, (assim como o texto a morte do Artur da Távola veio após o toque e escolha sutil, classicamente falando), comento agora talvez não como uma pistola ao amanhacer, mas como os dois copos de uísque degustados frente ao quadro da minha boneca de Luxo Audrey. Nada melhor do que o soco do pai e a dor; a contudência e o sofrimento é sempre a melhor escola para escritores. Escritos a sangue. É debruçar sob o bloco de notas e, passar sob o olhar e vitral das palavras as dores do corpo e da alma. As letras trêmulas e os blocos de notas largados no chão, te mostram o alto preço. Nada mais do que uma amante de açucar mascavo. Espresso sem açucar, ou melhor, depois de ler novamente a mais lindas das minhas poesias, um espresso e açucar mascavo seria puro e simplesmente completo. A vida brinca como num jogo de xadrez e, é certo que carregamos {ou escrevemos} para uns certos olhos, a pele se torna a principal aquarela dentre o papel de parede dentre textos, textos, textos em bloco de notas e doses de uísque. Um toque. Um beijo. A vida brinca como num jogo de xadrez e, as coincidências, encontros e desencontros, cerzem aquele que será a estrela derradeira, o horizonto de sonetos, crônicas, decassílabos. Rascunhos de uma noite perfeita.

Tainá Falcão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Gostei da referência à minha querida Alagoas, onde os homens são mesmos coronéis de pulso de ferro, mas, nem sempre tão corajosos quanto o menino Amilton. Os coronéis são firmes no pulso e até entendo um certo charme no rigor com que eles domam a vida. Mas, Amilton é diferente. Ao invés do pulso de ferro, está um coração sensível.

Muito obrigada pelo comentário no blog.

Beijos.