quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Instância

A menina está mexendo em um óculos há horas. Escondeu-se em um canto do armário que era só seu e limpava as lentes grossas fingindo não ouvir as vozes chamando pelo corredor do apartamento.

Gostava de ficar em silêncio, no silêncio tinha certeza que podia ouvir cada objeto a sua volta cantando os momentos, trazendo cheiro do passado e embalos na cadeira que parou de mexer e está trancada no quarto de Amélia.

- Renata!
- Onde essa menina se enfiou?
- Não vai brigar com ela.
- Só quando a encontrar. Renata!

As imagens dos livros sumiram. Ela tentou diversas vezes ouvir o cenário crescendo a sua volta e apenas páginas amareladas a encaravam de volta. Páginas lisas com pequenos pontinhos sobre ela. As formigas contadoras. Nenhuma mais contava histórias.

- Renata!

A pele amassada como roupa guardada não estava mais sobre seu cabelo. Não podia mais sentir o algodão de rosto em contato com o seu.

- Renata!
- Fique quieto, acho que a achei.
- Onde?
- Está ouvindo?

Queria de volta as cócegas, o sorriso, o olhar brilhando que dizia que havia roubado o seu quando ela nasceu.

- Dentro do armário. Fique quieto ela está chorando.

A porta se abre e trás consigo a luz do quarto. Apaga as memórias e o cheiro do homem que ela chamou de avô.

- Renatinha. Vem minha filha, vem se despedir do seu avô.

A menina bate no peito do pai e grita em meio às lágrimas.

- Não precisava me despedir dele! Vocês estragaram tudo! Vocês sempre estragam tudo!

Um comentário:

tatiana reis disse...

cara esse texto me vestiu lindamente.
tinha 4 quando minha avó ( a única que conheci) morreu. Fomos pra cidade dela ainda de madrugada, mãe que chorava, tios que me olhavam com piedade. Acho que um dos piores olhares que já recebi.
A verdade é que me levantaram pra ver a vó morta...nunca mais esqueci. E não tenho lembranças dela viva. Desses deslizes, a gente carrega muitos ecos.
=]