sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Doces de domingo


Após o almoço surge aquela necessidade absurda por uma pequena dose de glicose, a mesma que nos impede de dormir sobre os pratos e preserva a etiqueta do papo furado de domingo na casa da tia Antonieta. O próprio nome já remete ao ambiente com bibelôs e rococós por toda parte. Fico pensando se a maioria das viúvas de setenta anos são bregas pelo período que nasceram ou se pelo longo período de abstinência de contato social.

Voltando a cena da exigência glicogênica, vejo a exposição clara da crise econômica sobre a mesa. Nada de compotas, tortas, pudins e manjares deleitando nossos olhos. A tradição de antigos domingos é destruída pela visão triste e azulada de uma caixa de bombons. Um lamento passa por todos presentes e imagino que se meu tio Angenor ainda estivesse vivo morreria de desgosto. A diabete o levara no ano passado, o que para muitos da família foi um assassinato premeditado partindo de sua companheira que agora estava confirmado. Por que o fim dos doces após a morte de tio Agenor? A missão estava consumada. Essa cruel e maquiavélica doceira de mão cheia concluiu seu plano e agora não nos oferecia seus quitutes pois nunca foram nossos. Eram adocicados venenos, bem calculados e organizados para um fim que finalmente chegara.

As crianças avançaram para a caixa, ávidas para escolherem os seus favoritos, os mais velhos se resignaram a simplesmente ignorar e já pairar seus interesses no aroma do café e talvez na pilha de jornais e revistas estacionadas na poltrona de frente a TV. Era inevitável! O fim das conversas animadas durante os gemidos de prazer ao sentir o caldo de ameixas em meio ao manjar branco, a obliteração das piadas sacanas estimuladas pela overdose de açúcar ao degustar uma laranja encharcada recém saída de uma compota. Era isso. A aniquilação de uma família residia em uma mesa sem doces reduzida a uma caixa de bombons.

Já estava me retirando quando vi aquele pequeno bombom azul bebê olhando para mim. O mesmo olhar que me trazia doces memórias de um período de joelhos ralados e beijos roubados com minha prima Catarina atrás da distribuidora de bebidas do tio Fernando. Aquela criatura manhosa, de olhar plácido, que agora mais me parecia de um hippie maconheiro, com uma flor nos lábios me prometendo uma inesquecível experiência ao rasgar do lacre e deixar a suave película de chocolate romper entre meus dentes me levando ao paraíso em forma de caramelo com leite maltado. O nome ainda estava ali como uma promessa, um pedido de desculpas por um longo período de ausência: Lollo.

Arranquei o chocolate da mão do incrédulo filho de Catarina. Quem mandou ela se casar com esse Antônio que nem da família era?  Ela que aguente seu pranto agora. Fiquei com a guloseima nas mãos, me lembrando da tristeza ao ver na televisão sua odiosa transformação e traição. O chocolate de uma vaquinha amorosa e amarelada se vendendo aos planos maquiavélicos de marketeiros imperialistas, transformado em piada, expondo seu traseiro ao som de um Hit odioso de Lá Vem o Negão e, como se não bastasse, se afastando de nós em um nome impronunciável. O nome, o maldito nome que sempre me fazia passar vergonha ao tentar pedi-lo nas lojas de doces.

- Seu Manoel quero um Lollo.
- Um o quê, menino?
- Aquele chocolate macio.
- Qual? Não tenho nenhum Lollo.

O pobre senhor Manoel era meio gagá. Não posso culpá-lo pelo Alzheimer adiantado que o impedia de se lembrar que, alguns meses antes, o novo chocolate chamava-se simplesmente Lollo e não este nome estrangeiro idiota que, por não conseguir pronunciar, algumas vezes gerando risadas de outros garotos da minha rua, me obrigava a pedir outro e sentir o amargor da derrota em meio a mordida de Chokitos e Sonhos de Valsas.


Poucas memórias me fizeram sofrer tanto quanto esse chocolatinho de vaca lesada em minhas mãos. Minha esposa e a própria tia Antonieta vieram me consolar ou pelo menos tentar entender o porque das lágrimas e risos constrangedores que começavam a assustar as crianças e servir de último prego em um domingo que fatalmente chegava ao fim.

Um comentário:

Helena Rodrigues disse...

Adorei descobrir como a falta das sobremesas no almoço de domingo pode abalar uma alma! ;)